Greg Grandin - The Nation
E se Barack Obama pegasse a colunista do The Nation, Katrina Vanden Heuvel, ou a âncora do DemocracyNow!, Amy Goodman, para lhe aconselharem na próxima Cúpula, onde há 75 anos o presidente Franklin Delano Roosevelt fez algo parecido, quando chamou o ex-editor do The Nation e crítico ferrenho do militarismo dos EUA para assessorá-lo em política latino-americana? Como resultado – considere este seu curioso, ainda que pouco conhecido, fato do dia – o anti-imperialismo salvou o império Americano.
Roosevelt assumiu o cargo em 1933 para não apenas estabilizar a economia estadunidense, mas acalmar um mundo inflamado: o Japão tinha invadido a Manchúria um ano antes; os nazistas tinham tomado o poder na Alemanha; os imperialistas europeus estavam endurecendo suas relações sobre as colônias e a União Soviética tinha declarado sua estratégia militante do “terceiro período”, imaginando que o capitalismo global, mergulhado na Grande Depressão, estava nos últimos suspiros.
Quando pouco depois da sua posse Roosevelt pôs em marcha um chamado às “nações do mundo” para “fazerem um solene e definitivo pacto de não-agressão”, os colonialistas, militaristas e fascistas que dirigiam a Europa e a Ásia empacaram, porque os objetivos globais do novo presidente estavam distantes das suas ambições globais, a Conferência Econômica de Londres – que se reúne em julho e equivale ao encontro do G20 de hoje – dissolveu-se rancorosamente sem consenso a respeito de como responder ao derretimento global do momento.
Para a sorte de Roosevelt, a septuagésima Conferência Pan-Americana estava marcada para aquele dezembro em Montevidéu, Uruguai. A própria idéia do Pan-americanismo – de que as repúblicas americanas compartilhariam ideais e interesses políticos comuns – estava reconhecidamente moribunda. Ano após ano, em cada fórum internacional, delegados da América Latina simplesmente se submetiam às diretivas de Washington, enquanto silenciosamente se enraiveciam com as então recentes intervenções militares estadunidenses – no Panamá, em Cuba, Porto Rico, México, Venezuela, Honduras, República Dominicana ou Haiti. (À sua escolha).
O momento era então de construir com as nações latino-americanas uma revisão do direito internacional que efetivamente garantisse às grandes potências o direito de intervenção nos negócios das repúblicas menores. Diplomatas venezuelanos, por exemplo, insistiam que os EUA afirmassem o princípio da soberania absoluta. Argentinos seguiram adiante com seu próprio acordo de “não agressão” determinando a não-intervenção como o direito do hemisfério. Os caribenhos e os políticos da América Central insistiram que os destacamentos da Marinha dos Estados Unidos, então atolados em operações de contra-insurgência na Nicarágua, no Haiti e na República Dominicana fossem embora.
FDR despachou seu Secretário de Estado Cordel Hull para a cúpula, mas o instruiu a não oferecer nada mais que uma promessa de construção de algumas novas estradas. A exigência de que os Estados Unidos desistissem do direito de intervenção era “inaceitável”.
Ainda assim Roosevelt, que tinha um jeito de reunir e agregar conselheiros improváveis, também pediu a Ernest Gruening (recomendado pelo professor de direito da Universidade Harvard que em breve seria membro da Suprema Corte de Justiça, Felix Frankfurter) a acompanhar Hull. Em 1964, um senador do Alasca, Gruening, iria se tornar famoso por ser um dos dois únicos votos contrários à Resolução do Golfo de Tonkin, que o presidente Lyndon Johnson iria usar para deflagrar a Guerra do Vietnã, mas nos anos 30 ele já era um anti-imperialista comprometido.
Nas páginas do The Nation e em outros jornais de tendência de esquerda ele tinha ajudado a expor o uso da tortura, do trabalho forçado e dos assassinatos políticos que tiveram lugar sob as ocupações da Marinha no Caribe. Atrocidades que ele comparava às da brutalidade européia na Índia, na Irlanda e no Congo. Depois de visitar o Haiti e a República Dominicana, ele fez pressão no Congresso para que o Congresso desse fim ao fundo das operações de contra-insurgência da região, e condenou a “horda de concessionárias carpetbaggers[1] que seguem o campo militarista do imperialismo norte-americano”. Uma crítica inflexível como essa da diplomacia norte-americana ser escolhida para aconselhar o Secretário de Estado reflete a força da esquerda nos anos 30 – e a vontade de Roosevelt de trazê-la para si.
Queimando “e Murdewin”
Enquanto a delegação amarrava as velas em Montevidéu, Gruening ficou chocado ao saber que os EUA “não tinham programação exceto a de ser amigável com todo mundo e irradiar boa vontade”.
“Senhor Secretário”, reportou ele se dirigindo a Hull, “a única questão que concerne a todo país latino-americano é a intervenção. Nós deveríamos nos pronunciar fortemente por uma resolução abjurando isso”.
Hull, que Gruening descreveria mais tarde como falando com o sotaque carregado dos nascidos e criados como membros da elite do Tennessee, saltando os “g” e lutando com os “r”, respondeu que esse seria um negócio difícil de fazer.
“O que é que eu vou fazer quando o caos estourar em algum desses países e bandos armados saírem queimando, pilhando e assassinando americanos?”, perguntou Hull. “Como posso dizer ao meu povo que não intervenha?”
“Senhor Secretário”, repondeu Gruening, “isso geralmente acontece depois que nós intervimos”.
Mas Hull estava com medo da imprensa malvada. “Seu eu tivesse que ir a público contra a intervenção”, ele disse, “os jornais do [grupo] Hearst[2] vão me atacar de costa a costa...Lembre-se, Gwuening, o Senhor Woosevelt e Eu (“Ah”) temos de ser reeleitos (“weelected”).
“Vir a público contra a intervenção lhe ajudaria a ser reeleito”, respondeu Gruening. Iria, insistiu, ajudar o New Deal a dar a volta por cima na agenda da invasão, ocupação e insurgência que tinha danificado o prestígio dos EUA na América Latina e em boa parte do mundo.
Ele estava certo. Em Montevidéu Gruening ajudou a estabelecer uma ponte entre os enviados estadunidenses e os diplomatas latino-americanos “anti-americanos”, inclusive os de Cuba onde, bem antes da revolução de Fidel Castro, várias intervenções estadunidenses tinham estremecido as relações entre Havana e Washington. Mais importante, ele reconciliou o Secretário de Estado com o princípio de não-intervenção.
Hull “saiu-se magnificamente na ocasião”, escreveu Gruening, anunciando que os Estados Unidos iriam, de agora em diante “afastar e rejeitar” o “assim chamado direito de conquista...O New Deal na verdade seria uma bravata vazia se não levasse isso a sério”. Os delegados da América Latina interromperam sua fala em “aplausos tempestuosos e saudações”. E FDR, já um político ágil, aproveitou o momento, confirmando que “a política definitiva dos Estados Unidos de agora em diante é oposta à intervenção armada”.
“Nossa Era de 'Imperialismo' se aproxima do Fim”, anunciou o New York Times. O “Destino Manifesto” está dando lugar à Nova Política do “Tratamento Igualitário com Todas as Nações”.
Vinte e um diferentes tipos de ódio
Não o bastante, é claro. Washington retornaria à política do intervencionismo na era da guerra fria. Ainda assim, a importância dessa mudança de corrente não pode ser superestimada.
Montevidéu foi para Roosevelt a primeira política externa bem sucedida, marcando uma mudança no destino do país como superpotência ascendente. Ele então ordenou a retirada da Marinha do Haiti, enquanto devolvia ao país seu banco nacional; ele aboliu a odiada emenda Platt da constituição cubana, que tinha tornado a ilha um estado-vassalo; e começou a tolerar um grau de nacionalismo econômico na América Latina, inclusive a expropriação mexicana do holding da Standard Oil.
A enorme popularidade de FDR na América Latina incendiou suas aspirações de liderança mundial. Visitando Buenos Aires em 1936, ele foi recebido com festa por mais de um milhão de pessoas em êxtase, que o “ovacionaram calorosamente” e “bombardearam-no com flores”. Mesmo a imprensa geralmente cética de Buenos Aires anunciou-o como um “pastor da democracia”, enquanto nos hospitais se esperava uma enorme safra de “Roosevelts dentre os bebês meninos”, a despeito da interdição de nomes estrangeiros para crianças.
Relações melhores com a América Latina também ajudaram aos EUA a se reconstruírem da Grande Depressão. Com a Ásia fora dos limites e a Europa voltada para a guerra, Washington buscou no Sul tanto mercados para produtos industrializados como para matérias primas, negociando tratados de comércio com quinze países latino-americanos, entre 1934-1942.
Mais importante, a América Latina tornou-se o laboratório para o que viria a ser eventualmente conhecido como o multilateralismo bilateral – a rede diplomática que, depois da Segunda Guerra Mundial, iria permitir aos EUA acumular poder sem precedentes. Com a Liga das Nações praticamente morta, os diplomatas começaram a discutir a possibilidade de uma nova “Liga das Américas”, que iria eventualmente evoluir tanto para a Organização dos Estados Americanos como para as Nações Unidas. (Cada uma dessas preservando em seu âmbito o princípio da absoluta não intervenção) O próprio Roosevelt iria tomar a “ilustração das repúblicas deste continente” como um modelo para a reconstrução global do pós-guerra.
Cordel Hull ganhou o Prêmio Nobel da Paz por ajudar a fundar a ONU e FDR ganhou o crédito por ter superado “várias vezes os vinte e um tipos de ódio” para “vender a idéia da paz e da segurança dentre as repúblicas americanas”. Mas os agradecimentos deveriam na verdade ir para anti-imperialistas como Gruening e para os guerrilheiros, como Augusto Sandino, da Nicarágua, que tornou o militarismo uma política externa insustentável.
Setenta e Cinco Anos Depois....
Os paralelos com os dias atuais são inequívocos: uma economia global em farrapos; um novo presidente com um mandato de reforma, mas bloqueado externamente pelo levante de rivais e lesionado pela rápida recessão do poder e do prestígio dos Estados Unidos graças aos anos de militarismo arrogante e unilateral. E, seguindo no calcanhar da Cúpula das potências econômicas em Londres, uma conferência latino-americana: a Quinta Cúpula das Américas, a que comparecerão trinta e quatro chefes de Estado representando cada país Americano exceto Cuba.
A última vez que essa Cúpula se reuniu no prédio de um Resort Argentino, em Mar del Plata em 2005, os argentinos saudaram George W. Bush não como um pastor da democracia, mas como um evangelizador da guerra, do militarismo e do capitalismo selvagem. Milhares se reuniram ao longo de todo continente para queimar bonecos dele. Os representantes da Venezuela, Hugo Chávez e da Bolívia, Evo Morales, reuniram-se numa festividade paralela, a “Cúpula dos Povos”, enquanto o legendário jogador argentino Maradona chamou Bush de “ lixo humano” e “um pedaço de um assassino”. Para parafrasear o vencedor do Oscar Michael Moore na sua homenagem a Dixie Chicks, quando Maradona está contra você, seu tempo na América Latina se esgotou.
Com uma aeronave de carreira estacionada ao lado e jatos de bombardeio sobrevoando sua cabeça, Bush ainda parecia nervoso e claramente fora do lugar. Chegando apenas alguns poucos meses depois do Furacão Katrina ter devastado New Orleans, com a deriva no Iraque saindo do controle, a performance desastrosa de Bush na Argentina, combinada com uma impressionante exposição de unidade latino-americana, acelerou o declínio das pretensões dos neoconservadores à supremacia global. “Os Estados Unidos continuam a ver as coisas de um só modo”, disse um diplomata latino-americano na cúpula, “mas a maioria do resto do hemisfério se moveu e está sendo levada para outra direção”.
E assim tem sido, com uma virada à esquerda que começou com a eleição de 1998 de Chávez como presidente da Venezuela e continua velozmente. No ano passado, finalmente, o Paraguai elegeu um teólogo da libertação como presidente; e no mês passado a Frente de Libertação Nacional Farabundo Martí – o grupo guerrilheiro que se tornou partido político e que Ronald Reagan gastou 6 bilhões de dólares e 70 000 vidas salvadorenhas tentando derrotar nos anos 80 – finalmente chegou ao poder em El Salvador.
Nesta semana muitos estarão aguardando para ver se Barack Obama, no que será seu primeiro engajamento real com a América Latina, está pronto para reverter o curso nesta cúpula, como o fez Roosevelt mais de três quartos de século atrás. Para os Estados Unidos, a América Latina não tem sido apenas uma fonte de matéria prima e de mercados, mas uma “oficina”, um lugar em que coalizões de política externa em ascensão tentam novas maneiras de projetar o poder dos Estados Unidos na sequência de períodos de crise aguda. FDR fez isso, como o fez Reagan e a Nova Direita quando, nos anos 80, usaram a América Central para experimentar com um multilateralismo chapado, enquanto remilitarizava e remoralizava a política externa.
Hoje, o presidente Obama é tremendamente popular na América Latina. Uma série de políticos da região estão adotando inclusive legalmente seu nome para darem a si mesmos vantagens eleitorais, e indubitavelmente uma certa quantidade de bebês será chamada de Barack. O presidente do Brasil conhecido simplesmente como Lula disse que está torcendo por Obama – e até Madona admite que “gosta muito” dele.
Mas só com a popularidade já se vai longe. Pela primeira vez em muitas décadas, um presidente dos Estados Unidos pode dar-se conta de que os dias em que os EUA podiam usar a América Latina como um espaço para o ensaio do imperialismo estão chegando ao fim.
A opção colombiana
Então, o que Obama vai oferecer em Trinidad e Tobago? Ele vai, como Hull em 1933, ter a intenção de uma “boa vontade radiante”, mas não vai necessariamente “ser amigável com todo mundo”. Ele já envenenou a água ao insistir em tratar Hugo Chávez como um “obstáculo” ao progresso. Amando ou odiando Chávez, ele é reconhecido como um líder legítimo por todos os países da América Latina e é próximo de muitos deles. Por oito anos, a política da Administração Bush de estabelecer à força uma diferença entre a Venezuela e o resto da região provou-se um fracasso sombrio, exceto no que concerne ao aumento do fluxo hemorrágico do poder de Washington no hemisfério.
Em muitos fronts, contudo, é provável que o presidente descubra que seus obstáculos reais ao progresso com a fronteira sul repousam desconfortavelmente próximos de casa.
Na preparação para a Cúpula, a administração Obama fez algumas aberturas para Cuba, respondendo a demandas de quase todos os países latino-americanos para que Washington dê um fim à guerra fria contra Havana. A necessidade de manter senadores democratas da Flórida a Nova Jérsei (estados com grandes populações de americanos-cubanos) no curral significa que o embargo geral para viagens e comércio vai, contudo, manter-se no lugar, pelo menos por ora. (Em 1933, Hull tentou evitar que o enviado de Cuba falasse, temendo que ele fizesse uma fala feroz contra os EUA; Gruening apelou ao princípio da livre expressão para reverter esse banimento.)
Obama vai provavelmente reiterar as declarações oficiais recentes da Secretária de Estado Hillary Clinton, dentre outras, de que os EUA assume a responsabilidade real pela violência da guerra da droga no México e talvez lastime o modo como “uma inabilidade para evitar que armas fossem contrabandeadas pela fronteira” alimentasse assassinatos. Como toda administração, contudo, Obama terá de responder à Associação Nacional do Rifle (NRA em inglês), que a esta altura leva a cabo sua própria política externa.
Em 2005, por exemplo, quando o Brasil fez um referendum para implementar uma lei de controle de armamentos, o NRA gastou uma quantidade considerável de dinheiro fazendo lobbie para conseguir derrotar a proposta. De fato, o senador do Wyoming John Barrasco espera usar o medo da violência mexicana decorrente das drogas para forçar uma maior distribuição de armas de defesa. Como ele tratou da questão “Por que você desarmaria as pessoas quando elas poderiam ser pegas no fogo cruzado?...Os Estados Unidos não vão derrotar nossos direitos à Segunda Emenda em função dos problemas da fronteira do México”.
E por aí vai: em quase todas as questões que poderiam ou ajudar verdadeiramente a apaziguar o sofrimento dos latino-americanos ou permitir que os EUA retomem aliados estratégicos, políticos domésticos vão bloquear o alcance das ações de Obama, senão sua popularidade imediata.
Só recentemente um grupo de estudos organizado por alguns intelectuais latino-americanos de ponta e analisas políticos, inclusive ex-presidentes do Brasil, da Colômbia e México declararam que a guerra dos EUA contra as drogas fracassou e recomendou a legalização da maconha. Obama é obviamente simpático a essa posição, tendo instruído seu Departamento de Justiça a cessar as perseguições ao uso medicinal da maconha. Mas ele estará pronto para priorizar a guerra contra as drogas na América Latina? Provavelmente não.
Como candidato, o presidente disse que não iria se opor a todas as guerras, só às estúpidas – e essa é a mais estúpida possível. Essa guerra não diminuiu as exportações de narcóticos para os Estados Unidos, mas espalhou violência da América Central ao México, enquanto entrincheirou poderes paramilitares na Colômbia. O Plano Colômbia, peça central dessa guerra, é um legado da política externa de Bill Clinton, e a maior parte do seu custo de 6 bilhões de dólares foi depositado diretamente nos cofres das corporações que financiam o partido democrata, como a United Technologies, do Connecticut e outras empreiteiras de defesa do Nordeste.
No lugar de desmantelar o Plano Colômbia, há planos que estão evidentemente em andamento para replicá-lo para além das Américas. O almirante Mike Mullen, Chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA comentou recentemente que “muitos de nós, de todos os países do mundo podem aprender com os muito bem sucedidos desenvolvimentos do Plano Colômbia” e sugeriu que ele fosse franqueado “especificamente para o Afeganistão”. O correspondente da Casa Branca do Washington Post, Scott Wilson concorda com que Obama use a Colômbia como uma “sala de aula para aprender como lidar com o Talibã”. Sob a recomendação de Wilson há uma revelação esscondida: os oficiais dos Estados Unidos, escreveu, contaram-lhe “privadamente” que o esquadrão da morte do terror era o primeiro passo necessário no Plano Colômbia, servindo como um “substituto” até que o os EUA pudessem treinar um exército “profissional”. A administração Bush manteve “o fluxo de dinheiro para o exército da Colômbia a despeito das evidências de sua cumplicidade com massacres protagonizados por paramilitares”.
O caminho para a América Latina passa por Brasília...
Basicamente, o único caminho real do imperialismo de Washington pode passar rapidamente pela capital do Brasil, Brasília. Afinal de contas, Obama não trata a região como um líder de uma superpotência confiável, mas como um hegemon outonal. Como tal, sua melhor opção pode residir na formação de uma parceria com o Brasil – a economia latino-americana mais diversificada, com a recentemente descoberta de reservas de petróleo na costa e um conjunto enjoativo de aspirações políticas – para administrar o hemisfério. A Casa Branca reconhece claramente que esse é o caso, e é por isso que um oficial do governo convidou Lula para um encontro privado com Obama, num reconhecimento por parte de Washington da “ascendência global” do Brasil.
Pouco antes do encontro do G-20 em Londres, Lula culpou o “comportamento irracional dos povos brancos” e de “olhos azuis” pelo colapso financeiro. Sentado próximo ao empalidecido primeiro ministro britânico Gordon Brown, ele continuou: “Eu não conheço nenhum negro ou indígena banqueiro, então eu só posso dizer [é errado] que essa parte da humanidade, que é vitimada mais do que qualquer outra, deva pagar pela crise”.
Se essas palavras tivessem saído da boca de Chávez, teriam sido tomadas como a última manifestação de seu anti-americanismo irracional, mas a administração de Obama precisa de Lula. Em Londres, Obama mal pôde se conter: “Este homem aqui”, disse ele, puxando Lula pela mão enquanto o secretário do tesouro Timothy Geithner olhava. “Eu adoro esse cara. Ele é o político mais popular da terra. É por causa de sua boa pinta”. Isso certamente representa uma melhora significativa em comparação com George Bush, que perguntou ao predecessor de Lula, “Vocês também têm negros?”.
Ainda assim a cooperação do Brasil vem com um preço que Obama terá problemas para resolver. Os barrocos e inchados subsídios agrícolas e os benefícios fiscais – que os membros da Câmara e do Senado recusaram recentemente que Obama cortasse – vão impedir que o presidente se renda de bom grado à principal demanda de Lula: que os EUA deixe de lado sua retórica a respeito do livre comércio e abra sua economia para a agro-indústria competitiva do Brasil.
Pelos arredores de Caracas...
E há a Venezuela. Setenta e cinco anos atrás, o Secretário de Estado Hull temia que os jornais do grupo Hearst o atacassem “de costa a costa” se ele renunciasse ao intervencionismo. Bem, há mais coisas mudando...
Quando o Departamento de Estado de Obama declarou que o recente referendum da Venezuela para remover os limites de prazo do mandato presidencial (e então permitir que Chávez seja indefinidamente reeleito) era uma questão interna “consistente com princípios democráticos”, houve um ataque no Houston Chronicle, que é de propriedade – adivinhe só – da Hearst Corporation. Mais algumas críticas se seguiram, enviando alguns funcionários públicos para a “fogueira”: de acordo com o Wall Street Journal, “para assegurar que a administração Obama não tinha abrandado a política estadunidense com a Venezuela”.
À medida que a atual demonização de Chávez não acarreta absolutamente custos domésticos e é facilmente carregada de débitos potenciais, Obama pode ser forçado a manter algumas versões da administração Bush da linha dura, talvez dando cobertura ao presidente para uma retórica moderada, senão política, onde há um perigo real muito maior em jogo – como no Oriente Médio.
...E termina no Texas
Imigração é uma área em que Obama pode ter algum espaço de manobra, mas ele teria de vencer a ala Glenn-Beck do partido republicano. Mandando que os agentes da imigração e da alfândega parassem de caçar trabalhadores latino-americanos sem documentos (como os presidentes do México e da América Central tinham demandado) e abrindo uma via real para a cidadania seriam um grande passo em direção à melhoria das relações com os vizinhos do sul. Também seria uma garantia da lealdade do voto latino em 2012 e, ao criar milhões de novos eleitores, talvez levasse o Texas a uma situação eleitoral próxima dos estados com status indefinidos eleitoralmente.
Retornando à cena do crime
No final das contas, porém, a visão de Obama será limitada pela pequeneza de imaginação dos assessores de que está cercado. Não há nem Gruenings nem mesmo Hulls nesse grupo. Ele manteve da administração Bush o assistente da Secretaria de Estado da América Latina Thomas Shannon e escolheu Jeffrey Davidow para ser seu assessor especial na cúpula.
Diplomata de carreira, o trabalho de Davidow tem sido vastamente irrelevante, ainda que seu primeiro posto tenha sido na Guatemala no início dos anos 70, quando os esquadrões da morte sustentados pelos Estados Unidos estavam funcionando com fôlego, e foi seguido por um posto de oficial júnior no Chile, onde observou o golpe militar sustentado pelos Estados Unidos que derrubou o presidente eleito Salvador Allende. Comprometido com o mantra da liberalização econômica da era Clinton, esses diplomatas jamais irão recomendar o tipo de jogo de mudança de idéias que Gruening fez.
Dado que a crise financeira global vai dominar essa cúpula, a presença de Obama será vista por alguns como um retorno à cena do crime. Afinal de contas, foi no Chile que o modelo agora desacreditado de capitalismo desregulado foi pela primeira vez imposto. Isso ocorreu bem antes dos presidentes Reagan e Clinton o adotarem nos Estados Unidos.
Como esse modelo se espalhou para o resto da América Latina, os resultados foram absolutamente desastrosos. Por duas décadas, estagnação das economias, aprofundamento da pobreza e crescimento da desigualdade. Para tornar as coisas piores, exatamente quando uma nova geração de esquerda, tomando medidas para diminuir a pobreza e reduzir a desigualdade estavam se recuperando da catástrofe induzida por Washington, uma temerária bolha imobiliária nos Estados Unidos derrubou a economia global.
Os latino-americanos vão querer cobrar a fatura. Como até o presidente colombiano Álvaro Uribe, um aliado próximo dos EUA, disse, “o mundo inteiro tem financiado os Estados Unidos e eu acredito que eles têm um débito recíproco com o planeta”. Hugo Chávez não poderia ter dito melhor.
Notas:
[1]: Carptebagger é a expressão usada para designar candidatos forasteiros, que disputam cargos em outro estado que não o seu de origem, a fim de obter vantagens eleitorais. A origem do termo remonta ao período de reconstrução do pós-guerra de secessão, quando houve uma imigração do norte para o sul. Os sulistas passaram a chamar de carpetbaggers os imigrantes brancos que chegavam com uma espécie de matulão, um saco de roupas e pequenos utensílios de uso pessoal, prontos para, junto aos negros recém libertos e aos brancos de sul que apoiavam a reconstrução no partido republicano, ganhar dinheiro e obter poder. Juntos eles controlaram politicamente os ex-estados confederados por vários períodos. Os sulistas os tratavam como pilhadores e usurpadores do Sul, e assim o termo passou a ter uma conotação de pára-quedista político, de aproveitador. N.deT.
[2]: Grande Corporação de Mídia dos EUA, fundada 1887 pelo empresário William Randolf Hearst. N.deT.
Greg Grandin é professor de história na New York Univesity e um dos grandes especialistas em história latino-americana dos Estados Unidos. É autor do recentemente publicado Empire's Workshop: Latin America, The United States, and the Rise of the New Imperialism(Metropolitan).
Publicado em 15 de abril no The Nation
Tradução: Katarina Peixoto
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