segunda-feira, 4 de maio de 2009

A histeria da direita com a visita de Ahmadinejad


A julgar pelos gritinhos da República Morumbi-Leblon, pareceria que o Brasil nunca recebeu a visita do chefe de um estado autoritário. A julgar pelos videozinhos, você imaginaria que somente líderes de democracias tolerantes e liberais têm permissão de visitar o Brasil. É curioso que pessoas que não deram um pio acerca do inominável massacre israelense em Gaza venham agora posar de defensores dos direitos das mulheres iranianas. Não me consta, aliás, que alguém nessa turma tenha dito nada quando o Brasil recebeu a visita de Bush, responsável por uma guerra baseada em mentiras, pela adoção da tortura como política de estado, pelo campo de concentração de Guantánamo, pela morte de centenas de milhares de iraquianos.

Quando você vir alguém dessa turminha dizendo que Ahmadinejad propõe a exterminação dos judeus, faça algo muito simples: peça o link. Pergunte qual é a fonte. Pergunte quem traduziu o texto do persa. Porque o líder iraniano jamais disse isso. O que ele disse foi: "o regime que ocupa Jerusalém (een rezhim-e ishghalgar-e qods) deve ser apagado da página do tempo (bayad az safheh-ye ruzgar mahv shavad)." A tradução é de um dos maiores especialistas em Oriente Médio da contemporaneidade, Juan Cole, confirmada por dois outros tradutores do persa. Leia a entrevista de Ahmadinejad e confira você mesmo. Sobrando um tempinho, assista ao vídeo da palestra de Ahmadinejad em Columbia University, cujo presidente o recebeu com uma grosseria que até hoje envergonha a nós, acadêmicos americanos.

Suponho não ser necessário esclarecer que eu acho muita coisa no discurso de Ahmadinejad absolutamente repugnante, especialmente as declarações sobre o homossexualismo. Não defendo o que ele diz. Mas há que se corrigir as mentiras. A calúnia de que Ahmadinejad ameaçou “varrer Israel do mapa” -- e, a partir daí, a afirmativa mais delirante ainda de que ele propõe a exterminação de judeus – tem uma longa história, que se remonta a uma tradução manipulada do New York Times. É, meu chapa, quando se trata de Oriente Médio e do lobby pró-ocupação israelense, até as traduções devem ser minuciosamente revisadas.

Não custa lembrar, claro, que o Irã não invadiu país nenhum. O Irã não tem uma história de agressão contra seus vizinhos. Na guerra Irã-Iraque, o agredido foi ele, na época em que o depois demonizado Saddam Hussein era amiguinho de Donald Rumsfeld. Sim, é evidente que a situação dos direitos humanos no Irã é grave. Ela é quase tão grave como a situação na Arábia Saudita, país onde sequer existem eleições nacionais, mas cuja monarquia visita e faz polpudos negócios no Ocidente sem que se ouça um pio dos nossos preocupadíssimos democratas da República Morumbi-Leblon.

Qual é o país do Oriente Médio que ocupa ilegalmente terras de outrem há mais de quarenta anos, com uma história de sistemática agressão contra seus vizinhos e de desrespeito às resoluções das Nações Unidas? Qual é o país do Oriente Médio que infiltra espiões até mesmo no território de seu maior aliado? Não é o Irã.

Aceito debater o Irã com qualquer membro da República Morumbi-Leblon que me ofereça um ou dois parágrafos articulados acerca de como era mesmo maravilhosa a situação no país persa entre 1954 e 1979. Afinal de contas, a julgar pelos horrorizados chiliques, você imaginaria que antes da Revolução Islâmica as coisas andavam muito bem por lá. Na verdade, a única vez em que o Irã esteve perto de chegar a um regime aberto e tolerante foi um pouco antes de 1954, quando a Frente Nacional de Mohammed Mossadeq nacionalizou a indústria do petróleo. Mossadeq logo depois removido por um golpe de estado preparado pela CIA, naquilo que Robert Fisk, em sua obra monumental, chamou de primeira operação americana desse tipo durante a Guerra Fria (pag. 99). Com sua implacável verve britânica, Fisk acrescenta: pelo menos nós nunca afirmamos que Mossadeq tinha armas de destruição em massa.

O golpe de 1954 inaugura um período caracterizado por Fisk como de “monarquia absoluta” do Xá, controlada pela sua temida polícia política que, ao custo de assassinatos, tortura e supressão da oposição, garantiu a estabilidade necessária para que se exportassem 24 bilhões de barris de petróleo nos 25 anos que se seguiriam. A Revolução Islâmica canalizou a revolta da população iraniana, num momento em que muita gente ainda sonhava com a possibilidade de uma esquerda nacionalista e secular no mundo árabe. Essa foi uma opção que existiu durante algum tempo, com Nasser e cia., mas que sucumbiu ante os golpes de estado e as invasões americanas, assim como as sistemáticas agressões israelenses – com o apoio dos mesmos direitecas que agora acusam os críticos do sionismo e do imperialismo de serem cúmplices do bicho-papão islâmico.

Eu me pergunto se esses direitecas que histericamente gritam que Ahmadinejad quer “aniquilar” Israel sabem que o presidente do Irã sequer é o comandante-em-chefe das Forças Armadas do país. Quem tiver curiosidade arqueológica, que consulte a grande imprensa americana entre, digamos, 1998 e 2002. Naquele período, em que o reformista moderado Mohammad Khatami dava declarações de aproximação aos EUA e ao Ocidente, esses gestos eram descartados com o argumento de que o presidente do Irã não tem poder real – o mesmo fato do qual agora eles convenientemente se esquecem, para que possam apresentar Ahmadinejad como comedor de criancinhas.

Etiquetar Ahmadinejad como “ditador do Irã” é ridículo. Ele foi eleito. É verdade que sua vitória foi conquistada com os mesmos métodos de George Bush. Mas se quiserem entender o clima que possibilitou sua eleição, há que se estudar um pouco a enorme frustração dos setores jovens iranianos com Khatami, que tentou e tentou se aproximar do Ocidente, sendo sistematicamente rechaçado.

A tarefa da esquerda é dupla. Desmascarar a mentirada e a hipocrisia da República Morumbi-Leblon e do lobby pró-Israel ao mesmo tempo em que oferece solidariedade aos setores da sociedade civil que estão lutando no Irã – e também na Arábia Saudita! – contra regimes que são, sim, bastante opressivos. Há que se fazer um coisa sem perder de vista a outra. Mas a iniciativa de querer expulsar Ahmadinejad do Brasil, vinda de gente que recebeu Bush sem dar um pio, tem um só nome: hipocrisia.

Portanto, sem prejuízo nenhum ao meu apoio aos que, no Irã, lutam por uma democracia real, não posso deixar de retrucar: Bem vindo, Ahmadinejad. Tome sua cachacinha com Lula (sim, sim, sei que é proibido...), visite algumas das maravilhas desse que é um dos mais belos países do globo e não ligue para a meia dúzia que protesta. Estão em vergonhosa minoria. Já não sabem em que se agarrar. Na última eleição, o candidato deles não conseguiu sequer repetir no segundo turno a votação que havia tido no primeiro. É compreensível que estejam tão histéricos.

(*) Artigo publicado originalmente no blog O Biscoito Fino e a Massa.


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