A condecoração que Tony Blair recebeu em janeiro de George W. Bush, cujas guerras apoiou, foi a "Medalha da Liberdade". Eu tiraria as aspas para citar alguns que a ganharam por merecimento no passado: Doris Day, Lucille Ball, John Ford, James Cagney, Audrey Hepburn, se nos limitarmos a algumas simpáticas celebridades do cinema. Junto com elas, há hoje gente desprezível de diferentes áreas.Em janeiro Blair somou-se aos piores, ao lado de John Howard, ex-premier da Austrália, e Álvaro Uribe, presidente colombiano. O que Bush premiou, assim, foi a submissão deles aos interesses dos EUA. Blair e Howard - como o espanhol José Maria Aznar, estranhamente esquecido por Bush - apoiaram a invasão do Iraque. Quanto a Uribe, mantém tropas americanas na Colômbia e sonha torná-la "a Israel da América do Sul".
Blair era caso à parte por ter colocado acima de tudo as "relações especiais" entre Washington e Londres, consideradas pelo jornal conservador britânico Daily Telegraph apenas "um mito". Em 2006, o correspondente desse jornal nos EUA, Tony Harnden, citou a avaliação feita por Kendall Myers, um alto conselheiro do Departamento de Estado, sobre o papel britânico na guerra do Iraque.
O exemplo dos conservadores
No Brasil, a mídia golpista sonha com a submissão aos EUA - no debate da ALCA e em qualquer situação. E o que conseguiu Blair com o apoio à aventura bélica de Bush? Para Myers, que servia no Bureau de Análises e Pesquisas do Departamento de Estado, "absolutamente nada". Isso foi o que expôs em palestra feita há dois anos na Escola de Estudos Internacionais Avançados, da Universidade John Hopkins.O tema da conferência era "Quão especiais são as relações EUA-Grã Bretanha?" O analista explicou que os trabalhistas já deviam há muito ter defenestrado Blair da liderança partidária, mas não tiveram "coragem e audácia" (Blair sairia pouco depois). É um debate provocativo por causa das posições dos conservadores europeus sobre o relacionamento de seus países com o Império Americano.
A oposição conservadora britânica, mesmo evitando envolver-se, manteve certa distância da desastrosa política de Blair E nas Nações Unidas a França de Jacques Chirac, então presidente, foi decisiva para o repúdio no Conselho de Segurança do belicismo de Bush. Mas no Brasil, uma ousadia assim assusta a mídia corporativa e os principais aliados dela, tucanos e demo-pefelês.Ex-ministros de FHC, Luiz Felipe Lampréia e Celso Lafer parecem, ao contrário, adeptos da submissão a qualquer custo. A ponto de ter o Itamaraty no tempo deles, sob pressão de Washington, tentado forçar José Maurício Bustani, como embaixador licenciado do Itamaraty, a deixar à direção da OPAQ, a organização da ONU dedicada a fiscalizar a proibição de armas químicas, para a qual fora eleito e reeleito diretor.
Tudo de graça, nada em troca
A direita brasileira tem sempre, decorada, a desculpa de que o melhor é nunca aproximar-se de países às turras com os EUA - Venezuela, Cuba, Bolívia, etc. O pretexto é de que eles nada têm a nos oferecer e, ao mesmo tempo, podem prejudicar nossas boas relações econômicas com o mercado americano. É uma gente nostálgica da velha receita do alinhamento automático.Conservadores britânicos e europeus em geral costumam ser mais realistas, apesar da "Nova Europa" - a dos ex-satélites da Rússia, que encantava Donald Rumsfeld. Coube a ele criar a expressão, quando ainda era o chefão do Pentágono, num eforço para diminuir França e Alemanha, que ousavam resistir na ONU à guerra de Bush. Mas Rumsfeld foi dos primeiros a cair do cavalo - por causa da guerra.
Um mínimo de dignidade na política externa, ao contrário do que o governo FHC pensava, é como canja de galinha - se não fizer bem, mal não faz. Para o Telegraph, o líder conservador David Cameron foi astuto e engenhoso ao se distanciar do governo Bush, ainda que a expressão "relações especiais" tenha sido cunhada (há mais de 60 anos, claro) por um conservador ilustre, Sir Winston Churchill.Na sua análise franca, o americano Kendall Myers observou ainda que desde o começo aquelas "relações" foram benéficas apenas aos EUA. E qual seria a lição maior da guerra de Bush para o relacionamento futuro? Os chefes de governo em Londres na certa tentarão ficar menos próximo do que Blair (antes da invasão, aliás, Rumsfeld esnobou Blair, dizendo que poderia fazer a guerra sem a Grã Bretanha).
Como Wilson enganou os EUA
Myers confessou que se sentia "um pouco envergonhado e triste por termos tratado Blair daquela forma. Ele nada obteve em troca - nenhum tipo de compensação. Não houve reciprocidade naquela relação". Durante a guerra do Vietnã, acrescentou, o trabalhista Harold Wilson soube como fazer, "foi mais inteligente do que Blair, procurando nos enganar".Segundo Myers, a esperteza de Wilson consistiu em “soar bem, mas não fazer rigorosamente nada” - o oposto de Blair, que se deixou envolver e acabou atolado na aventura de Bush. Mesmo mais articulado do que Bush, Blair cometeu erro catastrófico ao ignorar a experiência britânica na Mesopotâmia. "Sua formação é de ator, não de historiador. Se tivesse lido algum livro sobre a década de 1920, teria ao menos hesitado”.O Iraque tornou-se estado-nação em 1920, depois de extraído do império otomano por franceses e ingleses, e de virar uma sangrenta "lambança mesopotâmica" - definição que Myers atribui a Churchill. No Oriente Médio os EUA, "além de não terem feito o que queriamos no Iraque, ainda prejudicaram grandemente nossas relações com outros". O Iraque virou tema dominante entre as questões bilaterais e Blair foi incapaz de conseguir qualquer coisa de Bush em troca. A não ser, claro, aquela medalha.
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